terça-feira, 5 de maio de 2009

Martírio

Ouço um som compassado lembrando o de um velho trem passando pelos dormentes, entretanto não existem trens por perto, ao menos não na minha memória. Um cheiro acre penetra em minhas narinas e minha pele toda parece estar em brasas. Minhas pálpebras pesadas insistem fechadas, a garganta seca me impede de engolir, os músculos dormentes, frio. Tento mover os dedos, água. O som continua, lembrando um gigantesco catavento agora acompanhado por outro também ritmado, retumbante, pancadas. Novamente forço meus olhos e uma profusão de cores e luzes os obriga a fechar novamente. Perco a consciência.


Não sei quanto tempo permaneci desacordado, mas agora consigo abrir os olhos, ouço o ventilador de teto do quarto ao lado girar devagar, aos meus pés gotas delicadamente se desprendem do chuveiro mal fechado retumbando na água da banheira. Ouço meu coração se esforçando para bombear o que resta de meu sangue através de meu corpo. Ainda não consigo me movimentar, mas vejo as barras de gelo na água ensaguentada a minha volta, a confusão do momento não me impede de perceber que algo está errado, tento lembrar o que aconteceu, como fui parar naquela banheira quando olho para o lado e vejo no espelho escrito com batom:

“Não saia da banheira”

“Leia o bilhete”


Volto os olhos à banqueta ao meu lado e encontro um telefone celular, uma prancheta de acrílico com um bilhete preso a ela e uma caixinha metálica com aparência antiga. Tomo a prancheta em minhas mãos e leio o seguinte bilhete.

“Surpreendente, não imaginei que você pudesse sobreviver, mas é impressionante como a vida sempre encontra um meio, um caminho. Como está lendo este bilhete terá a opção que poucas vezes eu dei, não deve lembrar de muita coisa agora, mas precisa entender que sua vida dependerá da decisão que irá tomar nos próximos minutos. As dores em breve irão começar embotando seus sentidos e sua capacidade de tomar decisões, para mim pouco importa, mas suas últimas palavras me fizeram pensar então resolvi lhe dar o que pode se chamar de uma chance. No celular está pronta a mensagem com seu endereço e o que aconteceu com você, a pessoa certa receberá. Só ela poderá salvar aquilo que você chama de vida, e na caixinha, seu passaporte para a escuridão. Creio que imagens do que aconteceu estão se formando em sua mente, não espere lamentos ou arrependimentos de minha parte, não faz parte da minha natureza. Achei divertido, assim como acharei divertido encontrá-lo novamente, independente do lado das trevas que você estiver. Nos meus cálculos você tem algo em torno de dois minutos para decidir entre o telefone e a caixinha, depois deste tempo você ira agonizar até a morte, não é uma boa morte, eu teria uma melhor para você, mas como eu disse, assim é mais divertido. A propósito, no espelho, não é batom.”


Finalmente as imagens da noite anterior me acometem freneticamente acompanhadas de delírios, a linda mulher, o vinho, sangue ou vinho, ela sobre mim, mais sangue, meu pedido, últimas palavras, quem sou, quem é você, ela me carregando praticamente desacordado para a banheira cheia de água, a água perdendo a transparência, ela escrevendo no espelho, colocando o dedo na boca e me olhando por sobre o ombro, um sorriso cínico, vem na minha direção, um beijo nos lábios, o gosto acre, fecha meus olhos com as pontas dos dedos, um dor lancinante corta minhas costas, preciso decidir, abro a caixa, um frasco, liquido vermelho, denso, deixo de lado, o celular, não consigo ler a mensagem, enviar, aparece um nome. William.


3 comentários:

  1. ÓTIMA!!!

    Só acho que faltou título... ou não?!

    ADOREI isso aki: "não é uma boa morte, eu teria uma melhor para você, mas como eu disse, assim é mais divertido. A propósito, no espelho, não é batom.”

    CONTINUAAAAAAAAAAAAAA!!!

    BEIJOS!!! :O)

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  2. P.S. > me pegou de surpresa, achei que ela não fosse dessas... Não adianta, eu nunca aprendo a nunca, NUNCA confiar nelas! E quanto mais bonitas, piores elas são! :O)

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