domingo, 28 de dezembro de 2008

Dorothy


O céu estrelado sem lua era suficiente para que enxergasse vagamente a estrada de terra pela qual seguia só, após ter deixado seu carro sem combustível alguns quilômetros atrás, em busca de um lugar que pudesse lhe ceder alguns litros de gasolina para que conseguisse finalmente chegar a seu destino e entregar as encomendas que agora estão escondidas no fundo falso do veiculo que lhe pregara uma peça, o que ainda não sabia era o preço que esta peça iria lhe custar e o quanto e quão definitiva seria a mudança que este fato isolado traria para sua vida, anos depois iria lembrar desta noite como a noite em que descobriu o mundo real, o mundo dos sonhos e pesadelos, o mundo que preferia não ter conhecido e que trouxe as responsabilidades que hoje carrega junto com a solidão que este conhecimento exige.
  O acidente que bloqueara a rodovia obrigou-lhe a usar uma antiga estrada de chão, não era um problema, pois se orgulhava da sua capacidade de pilotar qualquer coisa com motor, menos helicópteros, e de nunca se perder, mas o cansaço das longas e ininterruptas horas em que dirigia tirou sua atenção fazendo-a perder o caminho, neste momento seu mau humor só não era maior que a insegurança que sentia, não gostava de estar no escuro, desde criança, só que ainda não sabia o porquê, estava prestes a descobrir.

Caminhava há bastante tempo pela estrada deserta que cortava a mata, o peso da arma colocada na parte de trás de sua calça jeans lhe trazia algum conforto, não era eximia atiradora, mas faria algum estrago a uma distância não muito grande, então os sons começaram a perturbá-la, já os estava ouvindo faz muito, pensou que seriam produtos de sua imaginação perturbada pela escuridão, mas por via das dúvidas trouxe a arma para o bolso da frente de sua jaqueta. “Uma garota precisa se defender” pensava, esboçando um sorriso. Lembrava das aulas de “mato” que havia tido com um amigo.
“Para usar sua visão noturna você não pode olhar diretamente para o objeto, é melhor utilizar a visão periférica.”
“Sim, e como vou atirar olhando para o lado? Se eu ouço um ruído devo olhar para o outro lado? Isto ele não falou, ou não prestei atenção, diacho.”
- Ei, menina!
- PQP! – gritou sacando a arma e se jogando no chão olhando para todos os lados menos para o lado da voz
- Ou ou ou, calma lá! Não quero lhe machucar. – Exclamou ele. Colocando as mãos para frente e as agitando. – Porque você não olha para mim? Meu nome é Jacob.
- É porque, deixa pra lá. Que você faz aqui no meio do nada a essa hora? Seu carro também pifou? – perguntou sem perder a atenção e sem baixar a arma.
- Não não não, estou, como direi, pesquisando. – O estalido de um graveto quase imperceptível para ela, o colocou em alerta, em um relance o viu pegar algo do cinto e desaparecer de sua frente. A descarga de adrenalina ofuscou sua visão, mas a fez jogar-se ao solo e rolar para o lado da estrada contrario ao que havia desaparecido o estranho homem. Então pela primeira vez ouviu o som que jamais esqueceria, um rosnado forte em um tom grave que a fez soltar um gemido de pavor e apontar a arma na direção do som, esquecendo de vez as aulas de visão noturna.

“Cacete que vou olhar para o lado, vou atirar em qualquer coisa que aparecer na frente, não quero nem saber, eu não gostei daquele cara mesmo.”
- Não atira menina, sou eu!
- Vou atirar sim, quem manda estar rosnando ai! Se aparecer toma bala!
- Não sou eu que to rosnando! Calma.
- Vem para cá devagar então, mas mantenha as mãos para cima. - O homem então acende uma lanterna e atravessa a estrada rapidamente, mas tendo cuidado de não assustar a garota.
- Temos que ser cautelosos, ele está perto.
- Ele quem?
- Você não viu ainda? Tanto melhor. – neste momento a criatura salta na estrada e corre na direção deles, era um animal peludo e muito grande, quando Jacob virou o facho de luz de sua lanterna para ele, Dorothy pode ver os longos caninos do maior cão que já vira, pensou ser do tamanho de uma vaca, mas pensava estar exagerando sua percepção. - procure apontar para os olhos dele. – disse Jacob lhe jogando a lanterna enquanto sacava um facão das costas correndo na direção da criatura. O animal desferia patadas, postado sobre as patas de trás enquanto o homem se desviava e tentava estocar e cortar com o facão, era ágil e sabia usar a arma. Ela fazia o melhor que podia com a lanterna, pensou em atirar, mas os movimentos eram muito rápidos, entretanto em um giro Jacob jogou-se para trás desviando de um golpe que lhe arrancaria um braço dando tempo para ela fazer pontaria e atirar, efetuou vários disparos que assustaram a criatura fazendo com que ela se embrenhasse no mato novamente.

- mas quem é você? O que é aquilo? – perguntou quando ele se aproximou, agora ela podia, sob a luz da lanterna, observá-lo melhor, cabelos castanhos curtos, barba por fazer, roupas surradas e um tom de voz rouco e sorria, apesar de tudo, sorria.
- você deve imaginar o que é aquilo, você viu.
- um cachorro muuuuito grande? – disse ela já simpatizando com Jacob
- quase isso. – disse ele sorrindo. – o que eu faço? Vou atrás deles, e os tiro de circulação.
- mas com um facão? Não tem bazuca?
- os tiros o afastam apenas, sua pele é muito dura, a bazuca adiantaria, mas peca pela portabilidade. “Peca pela portabilidade” - pensou ela, “ ainda por cima erudito”.
- mas o que é aquele moonstro?? E porque um facão?
- aquele monstro é exatamente o que você está pensando, e o facão é para cortar-lhe a cabeça, de um modo geral funciona com qualquer coisa.
- ta, parece um lobisomem, eu sei que parece, já vi filmes, mas eles não aparecem apenas quando há lua cheia? Hoje não tem lua.
- para futura referência, os vampiros não têm medo de crucifixos.
- Vampiros???
- qualquer dia desses, te empresto meu diário. – e mostra para ela um caderno abarrotado de papeis e preso com um elástico. – E não sou o único.
- único o que?
- Caçador, Jacob o caçador.  – Diz, fazendo um galanteio,  - e o seu nome?
- Dorothy, como no livro.
- prazer Dorothy. – disse, estendendo a mão.
- prazer. – escuta então um silvo como se uma arvora estivesse caindo e vê a cabeça de Jacob sendo arrancada por uma patada da criatura que sorrateiramente se aproximara por trás, o monstro olha dentro de seus olhos, a avalia de cima a baixo, solta uma bufada rosnando, ela ainda segurando a mão sem vida de Jacob, esperando que a criatura terminasse com sua também, mas ele apenas deu as costas e se foi, deixando-os a sós na estrada. 

Amanhecia quando ela finalmente saiu do choque e arrastou o corpo sem vida de Jacob para o mato ao lado da estrada, tateou em seus bolsos em busca de informações sobre ele, encontrou o caderno e uma chave de carro preso a um chaveiro de pentagrama. Caminhou adiante pela estrada e encontrou um Ford Impala, testou a chave, ligou o carro e em seguida o toca-fitas. Como não poderia deixar de ser, arrancou derrapando os pneus e soltando cascalhos para todos os lados.